De peito aberto

Já era tradição: quinta-feira, lanche de churrasco com queijo na padaria da subida. Eu gostava de dizer “da subida” porque dava um tom de sacrifício, uma quebra na rotina sedentária para justamente comer algo nada saudável. Trabalhar muito em casa me deixava meio deprimido, então era bom criar esses hábitos forçados, ver gente, sair um pouco da nuvem de poeira e pelos de cachorro.

Quinta também era dia de me juntar aos machos de plantão do bairro e ficar na padaria secando a bela Luísa. Eu acho que é um pouco daquela ingenuidade de motorista de ônibus, sempre dando carona para a mulherada e, claro, nunca pegando nenhuma. A mulher esperta se aproveita, economiza a passagem e, de quebra, parte uns dois ou três corações por dia.

Seu Benedito, comerciante vivo, colocou Luísa num horário estratégico, de happy hour, e encheu a padaria de trabalhadores, colarinhos brancos, aquela alcateia que batia cartão na padaria e ficava ali, gastando o ordenado com cerveja, lanche, petisco e tudo que é consumível. É claro que não era uma horda, não era um fenômeno nacional, mas isso pode ser minha alma de romancista frustrado.

Digressões à parte, a padaria estava meio vazia naquele fim de tarde. Os bêbados contumazes – parte do cenário – estavam por ali, jogando conversa fora. A tevê passando um programa chatíssimo de esportes, e eu ali, esperando meu lanche chegar, tomando café e fazendo cruzadinha. E, sem pedir licença nem nada, me senta um completo estranho bem na minha frente, de costas para o balcão, felizmente não tampando meu calculado ponto de observação.

Foi tão súbito, tão inesperado que, quando esbocei abrir a boca para reclamar, o sujeito puxou a jaqueta aberta de lado e eu vi um brilho acinzentado que me calou de imediato.

– Quietinho aí. Não é nada contigo.

Ele falava baixo e rápido. Deu pra perceber um desespero na voz, uma tristeza no olhar. Ou é meu romancista interno retropoetizando a história. De qualquer maneira, a arma estava ali, pesando no ar, e meu tempo era todo dele.

– Conhece a Luísa, ali do balcão? Minha namorada.

A essa altura, o cara tinha toda razão do mundo. Eu só concordava, monossilábico.

– Conhece também o Valmir, que faz entrega? Vagabunda tá me traindo com ele.

Eu juro que a frase “que que eu tenho a ver com isso?” me passou pela cabeça, mas engoli em seco e resolvi perguntar:

– Você não está pensando em fazer nenhuma bobagem, certo? Olha, tem outros jeitos de resolver isso, cara, não precisa fazer loucura.

Eu suava frio. O sujeito contou sua história, e não haveria nada de mais se a traição dela não tivesse como resultado um homem enlouquecido, armado e disposto a limpar a honra assim que o tal Valmir chegasse. Eles tinham vivido uma tórrida história de amor, ele largara tudo para ficar do lado dela, arrumou casa, começou a montar vida quando ela subitamente começou a ficar estranha, distante… e os boatos o levaram a descobrir tudo.

– Eu sei que é bobagem, eu sei que eu vou me ferrar. Mas eu não tenho mais nada na vida. E não é esse idiota que vai ter. Se der merda, enfio a arma na boca e me mato.

– Mas escuta… aí é que não vai adiantar mesmo. Você vai acabar com a vida por causa de mulher? Seu plano é meter bala no outro e depois em você mesmo? Isso não muda nada a vida da Luísa, pelo contrário!

– Eu sei! Eu sei – o sujeito gritava entre dentes, e eu cheguei a achar engraçado uma pessoa gritar baixo –, mas eu já perdi tudo!

– Mas digamos que, de algum modo, você resolvesse essa questão. Ela larga esse Valmir e volta pra você. Não é questão de tempo até acontecer de novo?

Era um argumento bem ruinzinho. Eu sabia que era, mas jogar sujo era o que me restava: pelo menos, o sujeito hesitava. Comecei a ouvir o liquidificador perto do balcão: Luísa provavelmente tinha começado a fazer minha vitamina.

– Eu li uma coisa recentemente, falando justamente disso. Existem dois tipos de amor: o amor mesmo, de passar a vida inteira junto, confiar, conviver, e o amor-paixão, que é isso aí que você sabe. 99% do tempo os dois não andam juntos, entende? Amor-amor é para construir a vida, amor-paixão é para destruir. Sua vida não iria muito longe com a Luísa, ela é fogo de palha, vive pulando de um homem pra outro, deve ter deixado mais de um desesperado igual você. Não é para casar, não é para viver junto, sabe?

Parecia que aquela violência nos olhos dele já estava baixando. Quem sabe eu não conseguisse enrolar mais, buscar ajuda ou mesmo convencê-lo a desistir, quem sabe? Olhava para os lados e nada de resolução rápida, só aquele homem traído e ensandecido e armado na minha frente, com jeito de louco e falando rápido entre dentes. Eu falava sem parar.

– E o amante nem sempre é realmente culpado, sabe? Você não pegou o cara na sua cama, algo assim, certo? Muitas vezes o cara acha que a mulher está solteira, disponível, não sabe que ela leva essa vida dupla, ele não está tentando ferir outro cara, entende?

Meu lanche já estava levando uma eternidade. Luísa parecia não ter visto ainda o sujeito na minha frente, estava discutindo alguma coisa com seu Benedito e, como eu já era de casa, parecia que ela se sentia no direito de me deixar na mão. Eu já estava tagarelando sem controle, e ele hesitava bastante, já não respondia tanto e só fazia que sim com a cabeça.

– Conhece a história de Heloísa e Abelardo? Era uma freira do século XII que teve um caso com um filósofo de origem nobre, alguma coisa assim. Chama da paixão, esqueceram as diferenças que deveriam separá-los, tiveram um filho proibido… e aí o tio de Heloísa mandou castrar Abelardo. Capar, cortar fora, entende? Os medievais é que sabiam diferenciar o amor que dá futuro do amor que destrói, e seu amor com a Luísa é do último tipo, sabe?

O homem até tentou argumentar um pouco, mas estava obviamente confuso. Senti que estava quase conseguindo, e cheguei até a fazer uma proposta:

– Vamos fazer assim: levanta agora, esquece essa história, põe as coisas da Luísa na rua e vai procurar uma mulher de verdade, cara, joga essa arma no bueiro e deixa tudo isso pra lá. Sério, essa coisa do bueiro é boa ideia, ninguém vai saber: joga lá, é raso, eu vou conferir assim que eu sair, vou esquecer de tudo também, cada um no seu caminho. Combinado?

Súbito, a voz do seu Benedito me gelou a alma:

– Pô, Valmir, tem um monte de entrega na fila e você fica empatando a caminhonete…

Nem deu tempo de terminar. Jogando a cadeira de lado, meu interlocutor levantou, arma em punho e virou para o balcão. Luísa, seu Benedito e Valmir congelaram, até os bêbados contumazes pararam. Eu nunca tinha acreditado em “segundo que dura uma eternidade”. Mesmo depois do disparo, ficou todo mundo congelado por um tempo. O atirador piscou o olho para mim – ou assim romanceei mais tarde – e foi embora. Ninguém o interpelou, ninguém fez nada, ninguém esboçou reação nenhuma.

Luísa estava caída atrás do balcão, uma mancha vermelha crescente no avental branco, uma rosa no meio do peito. Depois de ajudar a polícia, enquanto eu descia a rua, vi a arma jogada no bueiro, do jeito que eu tinha proposto. O atirador nunca foi pego: não encontraram quase nada na casa que ele montou para Luísa. Eu mesmo nunca mais voltei à padaria, e nunca mais comi um lanche de churrasco com queijo: as duas coisas perderam um certo atrativo. Minhas quintas à tarde são ocupadas com o que quer que me aconteça, e procuro não pensar muito quando elas chegam.

5 Comentários to “De peito aberto”

  1. Acho que o último parágrafo poderia ser re-escrito. Não no sentido de mudar a história – gostei do fim – mas a maneira como foi retratada foi, não sei, rápida demais, sabe?

  2. ¿Atualizaciones?

  3. Tá na hora de escrever mais!

  4. É na brisa do filme “O Anticristo”.
    Muito bom.

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